De desenhos como os destas páginas, crianças de escolas públicas aprendem empreendedorismo e criam produtos como um celular a energia solar e um programa que faz desse aparelho um controle remoto para computador
Por Rodolfo Araújo
RETRATOS DA VIDA > Durante o programa Pedagogia Empreendedora, são realizadas dinâmicas lúdicas para atiçar a imaginação das crianças. Em uma delas, os professores pedem que os alunos desenhem um autorretrato: o objetivo é estimular o autoconhecimento. Outra atividade é o Mapa da Vida. A ideia é que os estudantes tracem a trajetória que imaginam para si mesmos, desenhando seus objetivos e as maneiras de consegui-los
João Paulo Fernandes, Wesley Lima e Gabriel Sampaio, todos com 15 anos, tinham um sonho: montar uma empresa que produzisse aparelhos eletrônicos, mas que também adotasse o conceito da sustentabilidade. Dedicaram-se a pesquisas, fizeram cursos técnicos, investiram em equipamento e criaram um produto inovador: o Solular, uma bateria que carrega aparelhos móveis somente com a energia do sol.
Os três amigos não fazem parte de nenhuma startup de tecnologia. Na verdade, Fernandes, Lima e Sampaio, assim como os outros dez “sócios” da empresa fictícia, são alunos da escola municipal Professora Aurea Cantinho Rodrigues, em São José dos Campos (SP). O projeto em questão, o Solular, foi o campeão da Feira do Jovem Empreendedor, evento realizado no mês de outubro, reunindo trabalhos de estudantes da rede pública do município.
O método criado pelo professor e escritor mineiro Fernando Dolabela atinge 400 mil alunos de 126 cidades brasileiras
A escola Professora Aurea Cantinho Rodrigues é um dos dois mil estabelecimentos de ensino onde foi implantado o método da Pedagogia Empreendedora. Idealizado pelo escritor e professor mineiro Fernando Dolabela, o programa contempla, atualmente, 400 mil alunos matriculados na educação infantil e no ensino médio das redes públicas municipais de 126 cidades brasileiras.
Dolabela começou a desenvolver o conceito há 20 anos, durante sua carreira de professor universitário — ele lecionou na UFMG e atualmente dá aulas na Fundação Dom Cabral. Na época, criou a Oficina do Empreendedor, que visava capacitar alunos do ensino superior a abrirem seus próprios negócios. Não deu certo: segundo ele, os jovens estudantes tinham um modo de pensar cristalizado, que tornava difícil uma mudança de valores. “Quanto mais eu me aprofundava no tema, mais percebia que o melhor momento para provocar alterações mais fortes seria a infância, quando a criança está sendo aculturada.” Decidido a voltar sua atenção para o universo infantil, Dolabela formou uma equipe sem experiência em empreendedorismo, mas especializada em processos pedagógicos. Em quatro anos, a proposta do método estava concluída.
A princípio, o educador não tinha a rede pública como prioridade: seus primeiros contatos foram com as escolas particulares. “Pensei que seria fácil entrar nesses estabelecimentos, até porque os filhos dos empreendedores estão lá. Mas o setor privado não tem consciência de que deve contribuir para o desenvolvimento do país”, afirma. A decepção fez com que procurasse as prefeituras municipais. A partir daí, a Pedagogia Empreendedora ganhou outra dimensão — o objetivo não é atingir apenas o aluno, mas também a cidade onde o programa é implantado. “Acredito que seja possível ajudar a criar uma cultura empreendedora junto a toda a população”, diz Dolabela. Segundo ele, a capacitação de professores e alunos influencia famílias e comunidades, contribuindo para o desenvolvimento econômico do município.
“O OBJETIVO É PREPARAR OS ALUNOS PARA QUE SEJAM EMPREENDEDORES DA PRÓPRIA VIDA ”
Fernando Dolabela, criador do programa Pedagogia Empreendedora
Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a Pedagogia Empreendedora não tem como meta principal transformar crianças em futuros empresários. “Empreendedorismo é cultura, e não uma ciência exata”, diz Dolabela. “O objetivo do método é preparar os alunos para que construam seus caminhos de forma autônoma, ou seja, para que sejam empreendedores da própria vida.” Por isso, diz ele, é fundamental treinar bem os professores e funcionários que irão aplicar o método.
Para começar, eles passam por um seminário, onde aprendem os princípios básicos e as diferentes maneiras de aplicá-los. Segundo Dolabela, o mais importante é que os docentes incorporem os conceitos. “Só assim eles serão capazes de desenvolver os conteúdos em sala de aula. Não é o caso de ensinar empreendedorismo como se fosse mais uma disciplina tradicional, em que a matéria é transferida para os alunos. Os estudantes precisam experimentar, na prática, os princípios do empreendedorismo.”
Depois do treinamento, professores e coordenadores decidem qual será o formato adequado para aquela escola: o empreendedorismo pode ser tratado como uma matéria na grade curricular, mas também pode ser um elemento transversal abordado em todas as disciplinas. Qualquer que seja a escolha, Dolabela recomenda que os alunos entrem em contato com o tema pelo menos duas horas por semana. Para tanto, o professor recebe um plano de aulas com sugestões de atividades para todo o ano letivo. Há uma terceira etapa: dessa vez, os professores passam por um seminário em que são estimulados a se tornarem multiplicadores dos conceitos da Pedagogia Empreendedora. “Dessa maneira”, diz Dolabela, “a escola pode passar o processo adiante.”
Em São José dos Campos, o método já funciona há 12 anos. A cidade, reconhecida pela cultura de inovação tecnológica, abriga cerca de 50 mil empresas. Tudo indica que o segredo para a continuidade dessa vocação está em sala de aula. Para os alunos da rede municipal, o contato com a Pedagogia Empreendedora começa bem cedo — vai da educação infantil até o quinto ano. Nessa fase, nada de pensar em empresas ou planos de negócios, o importante é soltar a imaginação. A ideia, segundo Carmen Lúcia de Paula, coordenadora do programa de empreendedorismo da rede escolar do município, é fazer com que as crianças “sonhem coletivamente”.
Com base nesse princípio, os professores desenvolvem dinâmicas para estimular a capacidade imaginativa dos pequenos. Em uma determinada atividade, por exemplo, eles são convidados a desenhar um Mapa da Vida: ali, devem traçar a trajetória que desejam para suas vidas, mostrando aonde pretendem chegar e os caminhos para ir até lá. Em outro momento, os professores pedem que desenhem um autorretrato — a intenção é desenvolver a noção da própria identidade.
“COM O PROJETO, APRENDEMOS A MONTAR UMA EMPRESA DE VERDADE SEM AGREDIR O MEIO AMBIENTE”
Wesley Lima, 15 anos, autor do projeto Solular, campeão da Feira do Jovem Empreendedor
Da quinta à oitava série, os estudantes passam a participar de atividades direcionadas a projetos de empreendedorismo. Na escola Sebastiana Cobra, por exemplo, a disciplina Artes Práticas é introduzida para os alunos do sexto e sétimo anos: a ideia é desenvolver atividades manuais que levem à criação de um produto. Nos dois últimos anos do ensino fundamental, o aluno aprende noções de trabalho em equipe, liderança, networking e educação financeira. Ainda no oitavo ano, os alunos desenvolvem empreendimentos sociais com apoio pedagógico do Sebrae — segundo Carmen, o objetivo é “despertar a consciência de benefício público da ação empreendedora”. Os 12 meses seguintes são dedicados ao projeto final, que envolve a elaboração de um plano de negócios e a criação de um protótipo. Ao serem concluídas, as iniciativas são expostas na Feira do Jovem Empreendedor — a última edição reuniu 64 projetos.
O programa de educação empreendedora não termina por aí. Em São José dos Campos, existe um laboratório voltado para os alunos que desejam dar continuidade ao projeto de empreendedorismo, agora no ensino médio. Implantado em 2009, o Laboratório do Jovem Empreendedor (Lajoe) funciona como uma pequena incubadora: as iniciativas são orientadas por entidades parceiras, como o Sebrae, para que ganhem estrutura e possam, eventualmente, conquistar o mercado. Como se trata de uma atividade complementar, os alunos frequentam o laboratório fora do horário de aulas.
“O CONTATO COM O MÉTODO FOI FUNDAMENTAL NA MINHA TRAJETÓRIA. EU QUERIA SER ADVOGADO, MAS ERA MUITO TÍMIDO. O PROGRAMA ABRIU MINHA CABEÇA”
Leonardo Darlan, 21 anos, dono da empresa K2 Media, que presta serviços de internet e tratamento gráfico
O processo de incubação do Lajoe envolve quatro etapas. Depois da inscrição, as ideias vão para o “hotel de projetos”, onde passam por uma lapidação de três meses, com orientação dos técnicos do Sebrae. A seguir, vem a maturação, que também abrange capacitações feitas ao lado de parceiros da prefeitura. Durante o treinamento, os estudantes aprofundam seus conhecimentos em gestão, mercado e atendimento ao cliente. Na quarta fase, a implementação, os alunos são informados sobre legislação, acesso a crédito e registro de patentes. Depois de três meses, os projetos são apresentados, também durante a Feira do Jovem Empreendedor. Ali, eles tentam emplacar suas ideias junto a potenciais investidores.
“Há um longo caminho a ser percorrido para que a cultura empreendedora ocupe um espaço relevante no Brasil”, diz Dolabela. Na opinião do educador, o atraso se deve a um fato simples: o país não oferece condições apropriadas para que se abram novos negócios. “Os marcos regulatórios são ruins e o apoio ao empreendedor é tímido.” Por isso mesmo, Dolabela decidiu elaborar um método único, sem nenhum similar internacional. “Eu queria criar algo absolutamente brasileiro. Nações como os Estados Unidos podem entrar direto nos instrumentos para empreender. Aqui temos de dar um passo atrás, mudar a cabeça das pessoas primeiro”, diz. Internacionalmente, a Pedagogia Empreendedora já começa a ser reconhecida. Recentemente, Dolabela foi convidado a mostrar seu método em uma reunião da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
Por enquanto, a metodologia de Dolabela está em apenas 2% dos municípios brasileiros. Para se expandir, depende do poder público — o que faz com que se torne refém de jogos políticos. “Cada vez que acontece uma eleição, o prefeito seguinte pode interromper a utilização da metodologia”, diz. “É por isso que dou tanto valor à participação da sociedade no processo. Dessa maneira, o projeto torna-se uma questão de interesse público.” No que depender da resposta dos alunos, a Pedagogia Empreendedora já mostrou ser bem-sucedida. Mais do que formar futuros empresários, o projeto tem sido decisivo para melhorar o desempenho dos estudantes em sala de aula. Basta ver o exemplo do trio criador do Solular. “O João Paulo e o Wesley tinham problemas de comportamento, e o Gabriel era um pouco desleixado”, diz Renata Matsuda, diretora da escola Professora Aurea Cantinho Rodrigues. A performance dos três melhorou a partir do momento em que se engajaram no projeto. “O desafio de empreender os deixou mais interessados.” Não à toa, os alunos que costumam se destacar são os que antes mostravam mais dificuldades disciplinares. “Por se apegarem menos às regras, eles se sentem mais livres para criar e romper paradigmas”, diz Carmen.
Exemplo dessa ousadia foi a atitude da equipe de Alefe Diego, de 15 anos. Durante o desenvolvimento do projeto, eles entraram em contato com uma comunidade virtual americana, chamada SourceForge, e solicitaram a um grupo de desenvolvedores californianos uma licença para utilização de um de seus softwares. Daí, adaptaram a tecnologia para criar um programa que transforma qualquer aparelho celular em um controle remoto para computadores. No futuro, Diego planeja abrir a própria empresa. “Antes, eu nem pensava nessa possibilidade. Depois do projeto, os horizontes se abriram. Quero ser empresário na área de informática. O segredo é nunca desistir. Essa é a principal lição que tivemos na escola.”
“SE NÃO APRENDESSE EMPREENDEDORISMO NA ESCOLA, NÃO TERIA ENCONTRADO TANTAS OPORTUNIDADES PARA MOSTRAR MEU POTENCIAL”
Jonathas Ribeiro, 15 anos, criador de uma inovadora lixeira para hospitais
Outro que passou a se empenhar mais nas aulas foi Jonathas Ribeiro, 15 anos, da escola Dorival Monteiro. Desde cedo, o filho de um funcionário de montadora e de uma dona de casa já exercitava seu lado empreendedor. “Eu gosto de inventar coisas”, afirma. “Já criei, com amigos, um avião a hélice reciclado que chegou a ganhar um prêmio. Saímos no jornal da cidade.” Para a Feira do Jovem Empreendedor, inventou uma inovadora lixeira para hospitais. Quando o recipiente está cheio, uma luz se acende de forma automática. Daí, basta apertar um botão e a sacola se fecha sozinha, saindo pela parte de baixo do produto. Com isso, ninguém corre o risco de ter contato com os resíduos. Ribeiro não quer, a princípio, ser empresário: pretende fazer faculdade de química. Mas acredita que a metodologia o transformou em uma pessoa mais segura. “Se não aprendesse empreendedorismo na escola, não teria encontrado tantas oportunidades para mostrar meu potencial”, diz.
Não faltam também histórias de estudantes que, inspirados pelo programa, decidiram-se por um futuro empreendedor. Leonardo Darlan, de 21 anos, participou de quatro edições da Feira do Jovem Empreendedor. Há cinco anos é proprietário da K2 Media, empresa que presta serviços de internet e tratamento gráfico, atendendo clientes como Roche, Bosch e Embraer. Segundo Darlan, a empresa ainda está engatinhando: o faturamento é de apenas R$ 80 mil anuais. “Tive muitas dificuldades no começo”, afirma. A parte mais difícil foi juntar recursos. “Vendi carro, moto, juntei a poupança e o que eu não tinha para começar. Investi tudo em dez computadores, o equivalente a R$ 15 mil.” Por enquanto, Darlan, que mora com a mãe, a autônoma Maria Aparecida Silva Santos, leva uma vida simples, sem maiores sobressaltos. Mas ele acredita que grandes mudanças vêm por aí. “O contato com o método da Pedagogia Empreendedora foi fundamental na minha trajetória. Eu queria ser advogado, mas era muito tímido. O programa abriu minha cabeça.”
Fonte: PEGN
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